Mamões e casamento

Faz um tempo, minha esposa tomou a missão de colocar frutas no meu café da manhã.
Outro dia, uma tarde chuvosa, saí do trabalho e passei no mercado para comprar alguns mamões. Na banquinha, achei só uns poucos, e todos meio feios. Garimpei, escolhi os mais apresentáveis e acabei conseguindo três, cada um com algum defeito pequeno.
Na manhã seguinte, cortei o primeiro em dois: uma metade com umas marcas de batida na casca e a outra perfeita. Comi a parte pior –tive que jogar uma colherada no lixo– e deixei a melhor sobre o balcão da cozinha. Mesma coisa fiz na segunda manhã, com o segundo. O último que sobrou na geladeira tinha uns pontos pretos; virei-o na prateleira de um jeito que escondesse as manchas.
Pois hoje, dia do último mamão, minha mulher acordou mais cedo –normalmente eu me levanto meia hora antes– e, quando eu saí do banho, ela já tinha tomado café da manhã e cantarolava no quarto. Fui para a cozinha e estava lá meu cereal, o leite, o pão, os frios e uma metade de mamão. Na hora, lembrei dos pontinhos podres e virei o bendito para ver: imaculado. Minha esposa acabara de ficar com o pedaço ruim.
Pegando a colher, me senti meio culpado por não ter ido à cozinha antes que ela. Mas, no segundo seguinte, pensei que isso seria negar que ela também pudesse fazer algo por mim. Imagino que tenha ficado feliz por ter saído da cama mais cedo para descobrir a parte ruim do mamão e escondê-la de mim, a mesma alegria silenciosa que eu tivera nos dois dias anteriores. Porque, no fundo, um casamento é isso: oferecer ao outro sempre a melhor metade.

Bruno Palma e Silva

Fonte: acepipes escritos

Mas antes

Ela saiu de casa batendo a porta. Mas antes, ele tinha mandado ela tomar no cu. Mas antes, ela tinha pedido que ele pelo menos limpasse a merda que fez. Mas antes, ele tinha derramado vinho no tapete. Mas antes, ela tinha duvidado de que ele derramaria o vinho todo no tapete. Mas antes, ele tinha dito que derramaria o vinho todo no tapete. Mas antes, ela tinha dito que a culpa não era dela de ele não ter um emprego. Mas antes, ele tinha dito que ela não precisava jogar na cara que ele não tinha dinheiro nem para comprar um tapete. Mas antes, ela tinha dito que a mãe dela merecia respeito, afinal de contas era ela quem tinha mobiliado o apartamento, do ventilador ao tapete. Mas antes, ele tinha dito que a mãe dela era uma vaca. Mas antes, a mãe dela tinha saído do apartamento batendo a porta. Mas antes, ele tinha pedido que a mãe dela saísse, de preferência sem bater a porta. Mas antes, a mãe dela tinha dito que ele estava mais gordo. Mas antes, ele tinha dito que a mãe dela estava mais velha. Mas antes, a mãe dela perguntou se ele tinha conseguido o emprego. Mas antes, ele disse que a mãe dela chegar de surpresa era só o que faltava. Mas antes, a mãe dela tinha chegado de surpresa. Mas antes, eles tinham se beijado e pedido desculpas e prometido que não iam brigar. Mas antes, ele perguntou por que é que nada que ele faz nunca está bom. Mas antes, ela tinha reclamado que ele não sabia nem abrir um vinho. Mas antes, ele tinha tentado abrir um vinho. Mas antes, ela tinha sugerido que ele abrisse o vinho. Mas antes, eles tinham se beijado. Mas antes, eles tinham deixado os filhos na casa da irmã dele. Mas antes, eles tinham dito que seria uma noite linda. Mas antes, eles tinham passado no supermercado e comprado o melhor vinho. Mas antes, ela tinha dito que tinha muito orgulho do marido que ele era. Mas antes, ele tinha chorado porque não era assim que ele se imaginava aos 35. Mas antes, ele tinha sido recusado na entrevista de emprego. Mas antes, ela tinha dito que confiava cegamente nele. Mas antes, ele tinha dito que era só uma entrevista de emprego, e que nada estava certo ainda. Mas antes, eles tinham combinado de comemorar as duas coisas, o aniversário e o emprego novo. Mas antes, eles tinham acordado e percebido que, naquela noite, eles iriam comemorar sete anos juntos. Mas antes, eles tinham sido felizes. Isso antes.

Gregorio Duvivier

Para o meu lourinho mais fofinho, com amor e carinho. Tia Duda

Sou sentimental. Talvez seja este o maior fato sobre mim mesmo. Sim, podem rir, não me importo. Prefiro que riam de mim por algo que sou do que ser superestimado por aquilo que é fingimento. Sou cheio de saudades e me apego facilmente a coisas e a pessoas. O passado é o tempo que acho mais bonito. Lá estão reunidas todas as minhas alegrias e lágrimas, as mancadas e aquela lembrança que me dá aquele sentimento de que fui feliz. E por isso, tenho o costume de guardar objetos que me fazem lembrar esse passado. Além da saudade, é claro. Tenho saudades de coisas que vivi, das coisas que ouvi falar, de músicas que não foram da minha época mas que escutei, de música antiga, romântica. Tenho saudade da chuva, tenho saudade do que aconteceu há quatro anos e tenho saudade do que aconteceu no último sábado. O futuro me preocupa também. Mas para falar a verdade, só quero que meu futuro seja bom porque quero que ele deixe boas lembranças pro meu passado. Não sei se devo me preocupar muito com isso, nunca liguei muito pra essa história de se sacrificar no presente para garantir um futuro melhor como as pessoas dizem. Acho que a gente tem que viver bem o tempo todo. Disso estou certo.

Você deve estar se perguntando por que essa postagem está assim diferente do que costumo postar. Ainda mais se você leu o título, que não tem absolutamente nada a ver com o que eu escrevi até agora. Coloquei esse título nessa postagem porque ela fala sobre o passado. O que escrevi no título é a dedicatória que está no primeiro livro que ganhei de presente de uma professora da minha segunda série: a tia Duda. Guardo esse livro há 15 anos. Continuar lendo

VII

Essa lua enlutada, esse desassossego
A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas, navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob as águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas na ponta dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro
Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo

Também isso te devo.

Hilda Hilst

A disciplina do amor

A disciplina do amor

Foi na França, durante a Segunda Grande guerra: um jovem tinha um cachorro que todos os dias, pontualmente, ia esperá-lo voltar do trabalho. Postava-se na esquina, um pouco antes das seis da tarde. Assim que via o dono, ia correndo ao seu encontro e na maior alegria acompanhava-o com seu passinho saltitante de volta à casa. A vila inteira já conhecia o cachorro e as pessoas que passavam faziam-lhe festinhas e ele correspondia, chegava até a correr todo animado atrás dos mais íntimos, para logo voltar atento ao seu posto e ali ficar sentado até o momento em que seu dono apontava lá longe.

Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o jovem foi convocado. Pensa que o cachorro deixou de esperá-lo? Continuou a ir diariamente até a esquina, fixo o olhar naquele único ponto, a orelha em pé, atenta ao menor ruído que pudesse indicar a presença do dono bem-amado. Continuar lendo